Publicada Quinta-feira, 19/09/2024
Saúde
Os divórcios motivados pelo vício em bets e jogo do tigrinho: 'Meu marido vendeu nossa casa'
Relatos de usuários e especialistas ilustram como o vício em apostas e jogos de azar causam problemas no casamento, muitas vezes resultando na separação.

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Felipe* ainda não decidiu se vai contar ou não para a esposa sobre seu problema com as bets, as plataformas de aposta esportiva.

Ou melhor, ex-esposa: embora ainda conversem e Felipe acredite que possam reatar, ela o deixou há 6 meses, depois de um relacionamento de 12 anos, junto com o filho de 10 anos do casal.

O problema, segundo Felipe contou à BBC News Brasil, não foram apenas os cerca de 40 mil reais deixados nas apostas, que ele perdeu sem dar explicações à companheira. Mas também seu comportamento ausente dentro de casa:

"A mente de um jogador fica obscura. Eu não conseguia mais desempenhar meu papel em casa, meu papel como pai. Não brincava mais com meu filho e parei de conversar direito com ela.”

Desconfiando que as dívidas do marido seriam por um suposto relacionamento com outra mulher, sua esposa decidiu se separar.

A história de Felipe ressoa nos relatos da advogada Audrey Cardoso Scattolin, da cidade de Americana, no interior de São Paulo.

Ela diz que, em 2022 e 2023, os divórcios motivados por vício em bets ou em jogos de azar, como o “jogo do tigrinho”, representam cerca de 80% dos casos de seu escritório, segundo levantamento interno.

Para uma das clientes de Scattolin, a gota d’água para a decisão do divórcio foi ver o ex-marido apresentando o jogo do tigrinho para o filho de 12 anos.

A advogada também acumula histórias de clientes cujos cônjuges perderam centenas de milhares de reais, além de bens como carro e até a casa da família. Vários se envolveram com agiotas para pagar as dívidas e para continuar jogando.

Desde a pandemia, as bets e os jogos de azar ficaram cada vez mais presentes no cotidiano dos brasileiros. São patrocinadores de times e campeonatos de futebol, estão nas campanhas de influenciadores, comerciais na televisão, anúncios em apps, banners no transporte público e várias outras aparições.

Menos visíveis, mas não raros, são os relatos de pessoas que se arrependeram de experimentar essas plataformas. Uma busca rápida em redes sociais como TikTok ou YouTube leva a vídeos de usuários que tiveram perdas significativas e tentam lidar com o vício, em posts seguidos de dezenas de comentários com histórias semelhantes.

Entre os relatos, chamam atenção os que falam das consequências do vício nos relacionamentos amorosos:

“Meu esposo está extremamente viciado e tá difícil para mim conviver com ele. Só ontem foi 3 mil para o ralo. Há 3 anos ele não consegue parar. Tô quase terminando com ele. Já fiz de tudo, conversei, ameacei terminar, ofereci tratamento. Mas ele não muda.”

“Meu bem, o meu [marido] me deixou por muito menos que isso. O jogo me destruiu, hoje tô pagando por isso.”

“Perdi 1400 do meu marido, estou criando coragem pra contar pra ele hoje. Mas ele não vai me perdoar.”

Consequências imprevisíveis

É difícil quantificar com precisão o impacto das novas ocorrências do jogo patológico, como é chamado o vício em jogos, nos casamentos.

Isso acontece porque as motivações dos divórcios não são oficialmente registradas no Brasil, explica a advogada Patrícia Gorisch, doutora em direito e diretora do IBDFAM (Instituto Brasileiro de Direito de Família).

Além disso, a possibilidade de fazer apostas por meio do próprio celular, sem ter que se deslocar a um estabelecimento físico como um cassino, é algo relativamente novo no país.